quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Cartas Vívidas I - Gratidão


Foto: Web

Ei, Lis!


Soube que andava aqui pelo bairro, passando férias na casa dos seus pais, então resolvi escrever essa carta para você. Outro dia lembrei-me das nossas brincadeiras no quintal da minha casa, quando você dizia sermos irmãs, mas separadas para famílias diferentes. - Nós fomos estrelas cadentes, sabe?  Houve uma enchente no céu que levou a nossa casa e agente se perdeu, então saímos a procura dos nossos parentes e caímos aqui na terra em casas diferentes. 
Naquele tempo, eu ficava surpresa com a sua capacidade de inventar histórias tão bonitas. Achava graça e ao contar para minha mãe, ela dizia que você era meio engraçadinha, para não dizer que achava um pouco doida, mas eu não me importava com o que pensavam. Sempre admirei suas histórias e como contava de forma espontânea as mais absurdas invenções. Acho que você fazia isso para superar a tristeza por seu pai ter ido embora de casa. Eu sei como é isso! Agente sente um vazio tão grande ao ser abandonado. Parece que todos sabem que não nos quiseram, que não éramos importantes o suficiente para que aquela pessoa só pensasse nos motivos dela e nos deixasse para trás. Fiquei com raiva do meu pai quando ele resolveu deixar minha mãe, depois de bater nela até ela ficar estirada no chão da cozinha. Minha mãe era uma pessoa boa, fazia de tudo em casa e, mesmo assim, um dia meu pai chegou em casa e quando ela perguntou porque ele tinha demorado na volta do serviço, ele simplesmente a espancou e foi embora. Mais tarde, mamãe descobriu que ele tinha uma mulher lá pelas bandas da periferia e essa mulher havia dado um ultimato a ele: - Ou abandona a sua família ou eu te largo! Meu pai abandonou-nos, mas antes disso, para descarregar a sua frustração de ser comandado por uma mulher, resolveu espancar a mais frágil já que homem covarde é assim - tira vantagem e depois banca o macho. Sempre achei que homem que bate em mulher é, na realidade, um covarde que não assume seus desejos ocultos de ser mulher e desconta a raiva no sexo feminino. Depois de algum tempo, descobrimos que a mulher pela qual meu pai havia trocado a minha mãe, aquela, fugira de casa com o dono da boca do bairro, mas antes disso, espancaram ele na rua em frente a casa onde moravam. Minha mãe não comentou nada comigo quando eu disse isso para ela. Só olhou em meu rosto e disse: - Não fique feliz pela desgraça dos outros! Ele é um coitado!
Não entendi o motivo de minha mãe não ter rido do que aconteceu ao meu pai. Hoje penso que ela se sentiu aliviada por ter continuado a vida sem alguém que não a valorizava. Minha mãe é um exemplo. Nunca mais colocou ninguém dentro de casa, apesar de ter seus namorados, mas nunca os trouxe aqui enquanto eu era criança. Dizia para mim que não queria expor-me a alguém que não conhecíamos realmente, que eu era o seu tesouro e que homem nenhum faria ela passar o que havia passado com meu pai.
As pessoas do bairro falavam mal da minha mãe. Diziam que ela era uma assanhada a qual saía para namorar e deixava a filha em casa. Eu me sentia sozinha, mas não tão sozinha porque eu ficava feliz por ela estar feliz. Os meus colegas de escola, principalmente os meninos, xingavam-me e também a minha mãe. Eu até dei um soco em um deles, motivo pelo qual fui expulsa da escola. Minha mãe ficou chateada, eu sei, mas ela entendeu que eu quis protegê-la, então matriculou-me em outra escola e disse para eu não levar a sério o que os outros dizem, mas ser superior a essas besteiras. 
Cresci com um bom exemplo, pois apesar de tudo o que diziam, compreendia a minha mãe e ela nunca desrespeitou a nossa casa. Mesmo que um dia ela levasse um namorado dela lá em casa, eu continuaria respeitando-a, pois ela se esforçava por nós duas até eu ter idade para procurar um emprego.
Depois que completei meus dezoito anos, construímos um quarto onde eu iria dormir para que minha mãe pudesse ter sua privacidade, esta que ela sempre mereceu. Não fiquei por muito tempo naquele quarto; Logo em seguida, encontrei o meu atual marido e alugamos uma casa no finalzinho da rua. Desculpe pelo desabafo, minha querida amiga. Nós nos afastamos depois que você foi morar na casa dos seus avós lá em Minas. Senti muitas saudades suas e das histórias que contava, até dos beijos que me dava no rosto dizendo que me amava. Pensava em seu carinho quando minha mãe deixava-me em casa para ir até a cidade. Imaginava as histórias que me contava sorrindo. Aquele seu sorriso largo, cheio de vida, embora chorasse por muitas vezes em minha presença. Sei que a vida é difícil para pessoas boas, pessoas que tem o objetivo de fazer o bem para as outras, com sentimento e sensibilidade verdadeira. Fiquei dura com o tempo, mas meu coração não conseguiu endurecer o suficiente. Hoje eu sei que só não virei uma pessoa amargurada porque fui capaz de sonhar, de acreditar que mesmo nos façam mal, um dia tudo de bom que fizemos de bom para os outros será devolvido a nós por forças superiores. Minha mãe ligou para mim e me disse que você tem uma filha também. Realmente, o mundo dá voltas e aqui estou dizendo a você que sempre a amei, minha irmã. A sua amizade foi uma luz em tempos de trevas para mim e, agora é um presente que guardo em meu peito. Sei que deve estar atarefada com os cuidados para sua filhinha recém-nascida, por isso escrevi essa carta a qual entreguei nas mãos de sua mãe para passar às suas. Gostaria que nos víssemos antes que vá embora, mas caso não haja a possibilidade, leve minha gratidão contigo. 

Da sua amiga de hoje e sempre, Pam. 


Ser grato é um dom! Corações gratos não morrem, transformam-se em estrelas luminosas no céu. 

Joice Furtado 

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