domingo, 26 de agosto de 2012

Tardes alaranjadas

Foto: Ben Goossens 


A tarde declinava assim como uma garrafa de vinho que se esvai a medida que é consumida. Os últimos raios de sol eram fachos de luz no horizonte que se fazia vermelho, vermelho-crepúsculo, irradiando laconicamente em meus músculos aquela visão. As aves no horizonte em bandos. O cheiro das damas-da-noite que se misturava com os vapores do rio e aquele odor característico das caixas onde os pescadores punham os peixes recém-pescados. As tardes incidem em minha retina como se cada uma delas fosse o fim do mundo, do ciclo, de mais uma das chances que tive de vencer ou dar uma rasteira no tempo que se esgota, que me foge entre os dedos feito aqueles peixes escorregadios. Olho o céu sumindo, talvez realmente pense que o mundo está acabando, pelo menos hoje. Naquele momento eu sumo, viro um com o bando que bate as asas em direção ao horizonte. A luz laranja é inebriante. Enlouqueço e gralho assim como os pássaros. Converso com um deles sobre o sentido de todas as tardes ele fazer a mesma coisa. Sempre! Ele me diz: essa é a vida e nela eu sou passageiro, sou viajante e aventureiro, sou ar e luz, sou um pedaço humano e ave, sou malandro, maldito, mendigo e nobre, rico e pobre, até inimigo íntimo, mas ainda sou nesse espaço de tempo, enquanto raiar o sol para mim sigo no bando; sigo aqui dentro sendo, sentindo, vivendo e como é bom sentir. Volto ao chão depois de minha pequena fantasia causada pelas muitas horas de sono que perco. A melancolia faz parte da minha vida e dela colho frutos doces e amargos. Saboreio os gostos, os pensamentos mais sublimes e mais sufocantes em um piscar de olhos, em uma arribação. Cheiro as flores pelo caminho, olho a volta, os sorrisos, os rostos, trejeitos, tudo me forma e informa. Inconformado sou e, ainda, a conformidade de tudo torna-se abrigo. Coloco-me entre as gentes que reparam meus olhos, reparam minha aparência confusa, minha lentidão de ser e me dizem coisas estúpidas as quais relevo, uma vez que perfeição é algo distante de todos os viventes. Sinto, sinto intensamente. As dores percorrem-me a alma feito a brasa na fogueira, reacendem ao leve sopro. Essas servem para algo, assim como para alguma coisa servem essas em mim. Ergo meu corpo pesado, minha alma pesada, com mil e uma nuvens pairando sobre a cabeça. Hoje estou tempestade, chuvisco. Pairo no ar, plano feito aquelas avezinhas. Multiplico-me tal qual as folhas da amendoeira na calçada e os muitos frutos esparramos pelo chão que cheira mal. Meu olhar é um misto e quando caminho pela rua ainda sinto a confusão tomar-me as entranhas. Minha pele reage a esse temporal destempo. Sento-me junto ao rio a observar os pescadores. Sempre a mesma coisa! Eles se divertem, diferem uns dos outros apenas pelo sobrenome, uns nem isso. Os sorrisos largos no rosto, aquela espera enervante para mim a qual para eles é um deleite. Reclamo muito e esse reclamar é um defeito a ser corrigido. Afasto os afagos quando estou em tempestades mentais. Ali observando os pescadores, as ideias percorrem minha mente enevoada e enervada. Até um tempo atrás, não me sentaria na beira do rio para ver o movimento dos pescadores, as crianças brincando na água morna do rio nesse final de tarde quente. Não, definitivamente não ficaria ali matando o tempo, esmagando os mosquitos que me roem até os ossos deixando manchas roxas em minha pele. Hoje, mais uma das poucas vezes que fiz isso, sento-me a beira do rio no entardecer da minha alma angustiada e me desafio a apagar as mágoas, transfigurar-me naqueles fachos de sol, de pássaros, de bando, em pescadores sorrindo todos satisfeitos com a vida humilde e sofrida; em criança que salta de cabeça no rio sem se preocupar com o fundo do mesmo, batendo as pernas naquela água morna que cheira a peixe. Hoje, só por hoje desafio-me a ser mais que um homem estranho, exalando meu creme pós-barba, voltando de um trabalho que não gosto, porém que paga as contas do mês. Sofrível em pensamentos suburbanos, muito mais que humanos, ainda que muito de mim não considere humano, mas bicho. Um farrapo que se recupera dos 'nãos' e dos 'talvez' que as experiências diuturnas fazem-me engolir. Um degenerado e corrompido, constrangido com tudo menos consigo mesmo, um azedo, um zé ninguém, um nada ainda que nada me reste, somente 'um' corpo que se recupera da depressão olhando o entardecer na beira do rio e, ao chegar em casa, joga sua pele flácida sobre a cama,  lamentando tudo o que fez de mal para os que o fizeram bem. Sim, o lamento é o pior dos desgostos. Fica pior a cada dia, afunda o cara nos vícios, gera descompromisso consigo mesmo. O lamento, esse é o enredo no qual eu me agarro quando me lembro de outros olhos, quando os meus se perdem no horizonte vendo os pássaros felizes. Lembro-me então: A vida deu-me as chances e fui egoísta demais para compreender isso. Agora conto as tardes como se fossem últimas. Elevo-me ao mesmo tempo em que sufoco, mas sobrevivo carregando muitos mundos, sendo que o meu próprio está trucidado por ser um idiota completo.

Joice Furtado - 26/08/2012

Lesma sou no esterco
um nervo frouxo
desgosto completo
ladrão assassino mendigo
mato sonhos e maldigo
o que acredita em mim
Fétido roedor entre baratas
conto latas de cerveja
latrinas
vomito as pestilências
formo minha incoerência
sou esse vivo idiota
todo hipócrita e inescrupuloso
desgosto de velhos e senhoras
não há mais honra em mim
sou um engodo

atraio todos os males do mundo

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